sábado, 25 de abril de 2015

Capítulo 9 – Um Espaço Vazio

Acordei no hospital e a minha cabeça "explodia" de dor. Via tudo à minha volta completamente desfocado. Um médico colocou-se na minha frente e, percebendo que me encontrava perturbada e confusa, disse-me para fechar os olhos e tentar descansar. Assim o fiz, mas a dor era tanta que era impossível.
Senti uma mão a tocar na minha, então abri os olhos, vendo que era um rapaz que sorria para mim.
- Quem és tu? - perguntei afastando a minha mão, ao mesmo tempo que o sorriso do rapaz se desfez.

O seu olhar da cor do mar transmitiu sofrimento. Com isto o médico aproximou-se dele e pousou a sua mão por cima do seu ombro. De seguida os dois murmuraram durante um longo período de tempo. O rapaz mostrava-se aterrorizado. Não fazia mesmo a mínima ideia quem era. Não percebia porque estava no hospital, não me lembrava sequer de me ter magoado, apesar de me doer todo o corpo. Via tudo destorcido e por isso questionava-me se estaria a sonhar.

O rapaz tornou a aproximar-se de mim. Como é que os médicos deixavam entrar um estranho para me ver?

- Então posso dizer-lhe eu, doutor? - perguntou o tal rapaz.

O médico assinalou que sim com a cabeça e o rapaz sentou-se no canto da cama hospitalar, perto de mim.

- Luciana, tu tiveste um acidente muito grave e perdeste uma grande parte da tua memória. Eu sou o teu namorado, o Matias.

- O quê? Como é possível? – mal conseguia falar com a dor que sentia na cabeça. – Como sei que isso é verdade?

- Tens que saber! Porque é a verdade! – levantou a voz e os seus olhos lacrimejaram. – Tens que te lembrar de mim Luciana…

A forma como implorava assustava-me.

- Matias não vale a pena. – alarmou o médico. – Se ela não se lembra agora não se vai lembrar mais. Pelo menos não da mesma forma que se lembrava antes do acidente. Tem paciência.

- Devia ter ido com ela… devia tê-las levado de carro à porcaria do cinema…

Não sabia do que falava. Estava cada vez mais confusa. Lembrava-me de várias coisas sobre mim. Como podia ser verdade que tinha perdido a memória? O tal rapaz chamado Matias saiu da sala e fiquei a sós com o médico. Decidi esclarecer as minhas dúvidas. Divulguei as minhas perguntas e o médico respondeu que era provável que eu apenas me tenha esquecido das memórias mais recentes. Pediu-me para que me tentasse lembrar do que tinha feito ontem ou na semana passada e percebi que tinha razão. Não me lembrava de absolutamente nada do que tinha sido a minha vida durante os últimos meses. Apenas sabia como tinha sido a minha infância. Lembrava-me da minha família, lembrava-me dos meus primeiros amigos da escola e a partir daí nada mais sabia sobre mim. O que o rapaz me tinha dito chocava-me. Como podia namorar com ele? Eu lembrava-me de estar perdidamente apaixonada por outro rapaz.

De seguida comecei a sentir-me melhor até que o médico informou-me que podia ir para casa.

Ao sair daquela sala deparei-me com quatro raparigas a olhar para mim. Continham o choro e sorriam com vontade de me abraçarem. Apenas uma delas conhecia: a minha irmã, Nicole. Das outras uma delas era loira, encontrava-se de cadeira de rodas e informou-me que se chamava Kelly. As outras duas eram morenas e disseram-me que se chamavam Carolina e Alice. A primeira rapariga, que se apresentara como Alice e uma grande a miga minha, aproxima-se dizendo para o médico: "Somos amigas desde sempre, ela tem de se lembrar de mim, certo?”. Olhou para mim e vendo que eu não tinha qualquer reação começou a chorar.

- Não sei quem és, desculpa. – atrapalhei-me.

O médico disse-lhe que por vezes há exceções e ela saiu disparada do hospital. Lamentava imenso não me conseguir lembrar naquelas pessoas. De seguida reparei no braço de Nicole, coberto de ligaduras.

- O que te aconteceu?

- Pergunta antes o que nos aconteceu...

O médico olhou para ela e avisou-lhe que não exagerasse nas informações que me dava sobre o que não me lembrava, pois poderia pôr-me demasiado confusa.

- Oh mana... - disse aproximando-se - sofremos todas um grande acidente. A Alice e a Carolina apenas se magoaram um bocado ao cair no chão, mas connosco foi pior. Eu desloquei o braço, a Kelly perdeu a força nos músculos da cintura para baixo e tu perdeste a memória! Mas tudo isto irá passar com o tempo não te preocupes - disse Nicole passando-me a mão pela cabeça.

Achava estranho Nicole falar comigo daquela forma tão amigável e carinhosa. Até a minha própria irmã desconhecia!

- Doutor, ela já pode vir para casa? – perguntou o meu suposto “namorado”.

- Com certeza. Mas tenha cuidado, não convém ajudar-lhe a lembrar-se das coisas, ela tem que recuperar a memória sozinha e com muita calma, caso contrário, pode ser pior. Não a pressione e ficará tudo bem.

- Vou para tua casa? E os meus pais? – perguntei olhando em meu redor.

- Ahm, antes do acidente moravas comigo e a Alice...

- Desculpa mas não vou para uma casa de dois estranhos. Ainda nem sei se devo acreditar no que tu dizes…

- Está tudo bem Luciana. – disse Nicole - Eu confirmo. Ele é o teu namorado.
Não sabia o que fazer. Não podia trata-lo como meu namorado se não o amava.
- Talvez tenha sido mesmo meu namorado, mas agora não é. – vi o olhar de Matias completamente despedaçado. – Desculpa…

- Não… tudo bem. Vais para tua casa com a Nicole. – esta olhou para ele como quem não achava boa ideia.

- Oh não me apetece nada ir para casa… O que achas de acamparmos hoje? – lembrou-se depois – Era uma boa ideia, não?

Matias passou as mãos pela cabeça e caminhou de um lado para o outro.

- Não Nicole! Quero ir para casa! Quero ver os pais! Qual é o problema?
Sentia-me cada vez mais assustada.

- Já chega! – Matias agarrou-me – Tu vais comigo.

- Larga-me! – dei-lhe um estalo.

- Luciana pára! Acredita em nós, é melhor ficares em casa dele!

 - Não me podem obrigar.

- Só hoje! Eu falo com os pais, não te preocupes. – Disse esforçando um sorriso e pondo Matias mais descansado.

Embora contrariada, acabei por ir com Matias. Estava tudo tão confuso! Que acidente teria sido aquele? Será que Matias era mesmo de confiança? Não sabia se devia acreditar na Nicole.

Entrei no carro de Matias e permanecemos mudos durante todo o caminho.

- Bem-vinda ao nosso lar temporário. – disse pegando no meu casaco – Esta não é a minha casa. É a casa de Alice. – apontou para a rapariga que estava sentada no sofá contendo as lágrimas. Era a rapariga que tinha dito que eramos amigas desde sempre. – Nós tínhamos decidido ficar aqui durante uns tempos, até encontrarmos uma casa só para nós os dois. Íamos recomeçar uma vida completamente nova… – a sua voz falhou.
Alice levantou-se, aproximou-se de mim e pegou levemente na minha mão. Sorriu para mim e pela primeira vez não a senti uma estranha.

- Anda, vou mostrar-te o vosso… - olhou para Matias - …o teu quarto.

Matias acompanhou-nos. Lá dentro, Alice deixou-nos a sós. Ele observou-me a sentar-me na cama e a olhar para o vazio. De repente aproximou-se e beijou-me. Empurrei-o atrapalhada.

- Estás doido? – afastei-me para não lhe dar outro estalo.

- Desculpa, desculpa… - arrependeu-se – Quero que voltes a ser a Luciana que eras! Não aguento ter-te assim. Pensei que se te beijasse irias lembrar-te.

Virei-lhe as costas e aproximei-me de uma mesa pequena, coberta de fotografias nossas.

- As coisas não são assim… Não me vou lembrar de tudo como por magia. – peguei numa das fotografias - Parecemos tão felizes...

- E eramos! – disse de voz trémula. - Não sei quanto tempo irei aguentar longe de ti, eu amo-te tanto!

Afastei-me de repente.

- Quero voltar para casa. Isto não parece real! Parece que de um momento para o outro morri e ressuscitei numa vida completamente diferente!

- Eu percebo. É perfeitamente normal sentires isso mas por favor não vás. Os teus pais não te vão aceitar!

- Claro que me vão aceitar, não admito que digas isso. – desta vez ficara ofendida. – Dizeres isso só para eu ficar aqui não ajuda! Cada vez acredito menos no que tu dizes. - disse pegando no telemóvel – Acabou, vou agora mesmo telefonar para eles.

- Não! - berrou Matias, tirando-me o telemóvel das mãos - Por favor, não faças isso... Vais-te arrepender.

- Dá-me o telemóvel! – exigi.

- Desculpa, isto é para o teu bem. Ainda é cedo para poderes voltar para casa. Dá tempo para a tua irmã poder ajudar-te.

- Ajudar-me em quê? Então vou a pé para casa.

- Não sejas maluca! Estas muito longe de casa!

- Onde estou?

- Não interessa…

- Diz-me! – ordenei.

- Estás em Coimbra…

Olhei em redor sem saber o que pensar. Não tinha qualquer remédio senão ficar ali.

Com isto deitei-me, irritada. Matias não devia fazer aquilo, eu tinha todo o direito de falar com os meus pais quando quisesse. A minha cabeça latejava. Só pedia um telefonema pois começava a ficar com medo que me escondessem que os meus pais estavam mortos.

sábado, 18 de abril de 2015

Capítulo 8 – Quando o Perigo Espreita

Acordei no jardim com os primeiros raios de sol. Matias ainda dormia ao meu lado, encostado ao meu ombro. Entre as flores em nosso redor, encontrei Scarpy a tentar-se esconder. Ainda era possível sentir o cheiro da relva molhada pelo orvalho da madrugada na qual Scarpy rebolava alegremente, acabando por acordar Matias.

- Adormecemos aqui? – Bocejou Matias queixando-se das dores de costas.

Rindo-me dele, ajudei-o a levantar-se e ele beijou-me, como uma forma de agradecimento.

- Já devíamos ter saído daqui. – comecei a preocupar-me a serio. – Eles já sabem onde moramos. Nem sei como não nos fizeram nada durante a noite.

- Tens a certeza que não fizeram nada? – disse Matias apontando para uma das janelas da casa, partida.

- Oh! Não me acredito como fomos tão irresponsáveis!

- Fala baixo, eles podem ainda estar lá dentro. – segurou-me a mão – Anda.

Silenciosamente dirigimo-nos para a porta das traseiras. Estava aberta para trás por isso talvez já tivessem saído. Entramos e fomos para a cozinha. Estava tudo completamente destruído. Peguei num rolo de massa que estava no chão e Matias numa faca. Revistávamos cuidadosamente o resto da casa e não estava lá ninguém.

- Roubaram daqui muita coisa. Felizmente já tinha as coisas mais valiosas nas nossas malas.

- Onde as guardaste? – preocupei-me.

- Já estavam na mala do carro, foi uma sorte não lhe terem feito nada. – disse ao vê-lo pela janela, intacto.

- Bem, a tentativa deles de nos assustarem falhou um bocado. Destruíram aquilo que íamos deixar abandonado. – sorri. – Vamos?

- Vamos! A tua amiga já deve estar preocupada por demorarmos tanto.

Entramos finalmente no carro e partimos.

Toda a viagem foi bastante animada. Finalmente sentia que tudo ia ficar bem. Iríamos poder recomeçar a nossa vida de novo, o que era mesmo muito bom. E o melhor era que, para além de ter comigo o melhor namorado que algum dia pensara ter, teria também perto de mim, a amiga que esteve sempre presente em todos os momentos da minha vida. Eu e Alice conhecíamo-nos desde bebés pois os pais dela sempre foram muito próximos dos meus. Esse pormenor era a única coisa que me punha nervosa pois de certeza que os pais dela iriam fazer perguntas sobre eu ter deixado de ter contactos com os meus pais e a minha irmã.

Quando chegamos não aguentei mais a ansiedade de ver Alice. Corri até à porta e toquei à campainha. Minutos depois vi a porta ser aberta por quem eu menos esperava.

- Tu? – o meu coração parou. Mickael estava à minha frente, mostrando-se, tal como eu, surpreendido.

- Que foi? - questionou Matias, confuso com o que acontecia.

Vi Alice a aparecer por trás de Mickael, completamente atrapalhada.

- Mickael é melhor ires embora. - disse Alice olhando para mim pálida.

Ele assim fez sem dizer uma única palavra. Olhei para Alice sem saber o que pensar.

- Luciana eu já te explico tudo. – fez sinal para entrarmos – Vocês nunca mais vinham que pensei que já não vinham hoje… Antes que penses coisas eu e o Mickael somos só amigos…

- Calma está tudo bem. – Abracei-a – Estou tão feliz por te ver.

- Claro que não está tudo bem. Eu conheço-te Luciana. Sei perfeitamente o que estás a pensar. Acabei de estragar-te o dia.
Ela tinha razão. Metade da felicidade que tinha antes de o ver desaparecera.

- Como é que consegues ser amiga dele depois do que ele me fez? Eu sei que não tem nada a ver contigo porque ele a ti nunca te fês mal nenhum mas só espero que tenhas consciência do tipo de pessoa que ele é.

- Eu sei Luciana. Nunca me esqueci do que ele te fez. Conheci-o melhor e percebi que ele não é a pessoa que pareceu ser. Perguntei-lhe várias vezes sobre o porquê de ele ter agido assim e tenho a certeza que se ouvires a explicação dele vais perceber.

- Eu não quero sequer voltar a vê-lo quanto mais falar com ele. Por mim podes ser amiga dele à vontade mas por favor, não quero falar com ele. Só te peço que tenhas cuidado, ele pode estar-te a enganar.
Matias olhava para nós as duas sem perceber nada.

- Desculpem interromper mas também estou aqui. Podem explicar quem é esse Mickael? – olhou para mim – Nunca me falaste dele. Se for teu ex só espero não ter que tomar medidas. – rimo-nos todos.

Explicamos-lhe tudo. Matias ouviu-nos pacientemente e no final perguntava onde ele morava. Queria espanca-lo. Alice tentou acalma-lo garantindo que ele não era tão má pessoa como parecia e que fizera o que fez de cabeça quente.
Mudamos o tema de conversa para um mais alegre. Falamos sobre o quanto eu e o Matias estávamos felizes juntos e o quanto sentia saudades de Alice e dos nossos velhos amigos da escola.

- Alice tive uma ideia. O que achas de nos reunirmos com os nossos antigos colegas de turma para uma noite de cinema?

- Acho uma boa ideia. Mas sabes que isso implica o Mickael…

- Eu referia-me aos amigos mais próximos. A Carolina, a Kelly…

- Sim, por mim tudo bem! Tava a precisar de uma noite só de raparigas. – Sorriu. – Era uma boa oportunidade para te reencontrares com a tua irmã…

- É verdade que já tenho muitas saudades dela. Apesar do feitio difícil é impossível eu não gostar dela. É minha irmã! Talvez lhe telefone. Na verdade ela não tem culpa do que aconteceu com os meus pais.

Durante as próximas horas Alice mostrou-nos toda a casa. Disse onde iriamos dormir e onde poderíamos guardar as nossas coisas. Estranhei o facto de não estar mais ninguém em casa e ela respondeu que os pais dela trabalhavam agora durante todo o dia e chegavam sempre muito tarde a casa. Com a universidade Alice também passava pouco tempo em casa e, portanto, mal tinha tempo para falar com eles.

Ao ouvir Alice falar do emprego dos pais dela lembrara-me do emprego do Matias. Aquele café devia ser importante para ele, pois, afinal de contas, era a única coisa que os pais dele lhe deixaram antes de morrerem. No entanto agora teríamos que arranjar um emprego novo e seguir em frente em tudo.
Entretanto a noite chegou e a campainha tocou. As convidadas tinham chegado para irmos todas juntas ao cinema. Tal como falara com Alice, tinha telefonado a Nicole e perguntado se aceitava um reencontro para matar saudades. Para minha surpresa ela aceitou logo. Corri ansiosa para a abrir a porta e lá estava ela. Tinha mudado bastante fisicamente. Tinha um ar mais esbelto e confiante. Abraçou-me sorridente. Já nem parecia a mesma Nicole resmungona e infantil que conhecia. Atrás dela vinha a Carolina e a Kelly. Olhei para Nicole e ela chorava.

- Desculpem. Pensava que nunca mais iria voltar a ver-te Luciana. Tinha tantas saudades tuas, nunca pensei sentir tanto a tua falta. – lacrimejou Nicole.

- Nem eu! – abracei-a novamente.

A minha irmã diabólica que fazia a minha vida no inferno chorava de saudades minhas quando eu até duvidava que ela aceitasse o convite para o cinema. Nem parecia real.

- Temos muito para conversar Luciana! – disse Nicole sorrindo – Eu sei que na altura deixei que fosses embora de casa, sei que não quis saber de ti quando foste atacada por aqueles homens, sei que sempre demonstrei estar-me a marimbar para ti. Mas hoje estou aqui para te mostrar que isso não é verdade. Eu sou assim com toda a gente. Já percebi que não é correto. Aprendi muito e agora só quero as tuas desculpas. Quando desapareceste fiquei tanto tempo sem receber noticias tuas que pensei que morreras. O sentimento de culpa cercava-me todos os dias. Quando recebi o teu telefonema nem queria acreditar… Estou mesmo feliz por estar aqui contigo.

- Claro que te perdoo. És minha irmã. Podias ter todos os defeitos do mundo que continuaria a amar-te.


- Vá, parem lá com isso. Até eu já estou a ficar emocionada. – disse Alice. – Às vezes tem mesmo que acontecer coisas graves para se perceber o quanto gostamos de uma pessoa.

Ganhei coragem e fiz a pergunta que há tanto tempo ansiava por perguntar.

- E como estão os Pais? – balbuciei.

-Eles não voltaram a falar de ti desde o dia em que saíste de casa, nem quiseram que eu falasse. Praticamente proibiam-me de falar nesse assunto. Ficaram mesmo ofendidos com o que tu lhes disseste.

- Eu não queria ter dito aquilo, saiu-me por estar revoltada com a decisão deles. Foi uma estupidez.

- Tu não tens culpa, os pais não deviam ter agido daquela maneira. Agora vivo aqui em Coimbra com a mãe. Quando soube que estavas cá fiquei surpreendida. Com o nosso pai só estou ao fim-de-semana. Ele continua na nossa antiga casa e namora com outra mulher. Eles não nos tinham dito mas o facto do nosso pai se ter apaixonado por outra mulher foi o principal motivo de se terem separado. Também não gosto nada disto mas tenho de me calar senão acontece-me o mesmo que te aconteceu a ti.

- A serio? Eles eram capazes de te por fora de casa? Também a ti?

- Nem duvides, eles estão cada vez piores desde que se separaram!

- Nem sei o que te dizer. Pensava que não me podia desiludir mais com eles mas pelos vistos estava enganada. Eu pensava que a mãe tinha ido para Lisboa e tu tinhas ficado com o pai.

- Ela queria fazer isso no início. Mas como o meu pai namorava não queria ser substituída como mãe e veio para aqui.

- Nem acredito, enfim… Vamos ao cinema?

- Vamos! – Berrou Alice em pulgas.

Despedi-me de Matias que me perguntou se queríamos boleia até lá. Alice, que conhecia tão bem aquele Shopping, respondeu por minha vez, dizendo-lhe que não era preciso pois sabia um caminho que dava para chegarmos lá a pé em poucos minutos.

Caminhamos então as 5 pela estrada em direção ao tal Shopping. Iríamos ver um filme de ação e drama em 3D. Tinha sido considerado um dos melhores filmes do ano e por isso tínhamos de nos despachar porque os bilhetes poderiam-se esgotar se demorássemos demasiado.
Estávamos tão entusiasmadas que nem nos passava pela cabeça que alguma coisa pelo caminho poderia correr mal. A verdade é que as tragédias dão-se sempre quando menos se espera, e naquele momento, ninguém estava de certeza à espera.

O Shopping era já do outro lado da rua quando atravessamos a estrada sem desviar o olhar do enorme placar com a imagem do filme que estávamos prontas para ver. Entretanto era tanta a emoção e a ansiedade, que acabamos por não reparar no enorme camião que vinha a alta velocidade na nossa direção. O medo projetava-se nas nossas caras quando o camião embateu contra mim e Carolina. Tentando-se desviar, chocou contra o poste de eletricidade e caia agora descontrolado. Fazendo tremer toda a extremidade, caiu por cima das pernas de Kelly. Nicole e Alice estavam no chão aflitas, por mais que nos quisessem ajudar já era tarde de mais. Com a força do camião, eu e Carolina fomos projetadas pelo ar, sendo atiradas pela ribanceira abaixo. Já sem quaisquer forças, rebolava quase a pique pelas silvas e os ramos caídos das árvores que se enrolavam como cordas nas minhas pernas. Embati fortemente numa grande pedra pontiaguda e tudo se desligou.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Capítulo 7 – Traços de Amor

Matias olhou-me carinhosamente nos olhos e sorriu.

- Há tanta coisa p'ra te dizer que nem sei por onde começar... Desde o dia em que te conheci que a minha vida mudou. A tua beleza, apesar de ser discreta, despertou-me desde o primeiro dia. Sinto uma paixão incompreensível! Cada segundo que olho para ti é pouco tempo, só queria poder olhar-te todos os instantes. És uma pessoa espetacular como nunca conhecera. Tornei-me tão dependente da alegria que me transmites que já não consigo viver sem ti. Não consigo sequer imaginar o que seriam os meus dias se desaparecesses ou deixasse de poder saber se estás bem. Amo-te Luciana. Amo-te como nunca amei ninguém e prometo que vou estar aqui para tudo o que precisares!

Estupefata, fiquei como uma estátua a olhar para ele. Não fazia a menor ideia do que lhe responder. Perdi-me nos pensamentos. Não tava à espera daquilo. Sabia que ele sentia muito afeto por mim, mas nunca imaginei que fosse dessa forma.

- Responde-me qualquer coisa rapariga, ou podemos começar a escavar para me enterrar. Está nas tuas mãos essa decisão. - brincou.

- Sabes que não sou a melhor com palavras. - ri-me - Apanhaste-me de surpresa. Garanto-te que gosto imenso de ti. Disso não te permito sequer que duvides! Mas sempre te vi como um irmão mais velho. Um amigo inseparável. É estranho imaginar-te doutra forma, desculpa...

- Não, está tudo bem. Desde que tu estejas bem eu também estou. Eu só não aguentava continuar a esconder-te isto. Tinhas todo o direito de saber o que sinto.

Sorri. Ainda bem que ele compreendia. A nossa amizade era tão perfeita que sentia um medo horrível de que alguma coisa a estragasse. Como conseguiria beijar um irmão? Nem sequer imaginar conseguia.

Dito isto Matias levantou-se de forma animada, tentando recuperar o ambiente agradável que pairava entre nós minutos antes daquela conversa. Fez-me cócegas e puxou-me até ao mar. A água estava gelada, o que nos fazia berrar como dois doidos enquanto chapiscávamos água um para o outro. A noite chegava e via-se no céu a lua completamente cheia. O luar reluzia na água onde nós permanecíamos ainda, brincando como duas crianças.



O frio começava-se a sentir cada vez mais na pele, por debaixo das roupas encharcadas, obrigando-nos a sair da água. Matias embrulhou-me no seu casaco de pele e abraçou-me. Olhei para ele. Não conseguia negar que agora o via de forma diferente. Mas havia qualquer coisa dentro de mim que me fazia afastar de todo a ideia de virmos a ser, no futuro, mais do que éramos.

Estávamos a caminho do carro quando avistei, ao longe, por entre a escuridão, um grupo de homens de roupas escuras, cigarros na mão e ar sinistro. Olhavam fixamente para mim como se fosse comida que já não viam há muito tempo à venda. Esta visão estranha fez-me lembrar de imediato os homens que me teriam agredido. Talvez fosse medo de os reencontrar ou talvez fossem efeitos do choque pelo que eu passara.

- Que se passa? - perguntou Matias, apercebendo-se que algo me perturbava.

- São aqueles homens. Não param de olhar para nós...

- Oh, ignora isso.

- Não estas a perceber... Parecem os que me bateram. - sussurrei com medo que nos ouvissem, apesar da distancia ser longa.

Matias deu-me a mão para que me acalmasse e mudamos de direção. Evitou olhar para eles. No entanto a nossa atitude piorou ainda mais a minha aflição. Vi os homens atirarem os cigarros bruscamente para o chão e começarem a caminhar na nossa direção. Tinham um sorriso na cara que me fazia estremecer.

- Eles estão-nos a seguir! - sussurrei aflita para Matias.

Aceleramos os passos. Estávamos perto do carro.

De repente ouvimos os passos deles cada vez mais perto de nós, como se tivessem começado a correr. Olhamos para trás e não vimos ninguém. Estava completamente em pânico! Tinham desaparecido da nossa vista e poderiam aparecer em qualquer lugar.

Corremos até ao carro, entramos e Matias acelerou a fundo.

- Cuidado! Eles esconderam-se, podem voltar a aparecer. Podem estar armados!

- Calma, já não nos apanham mais. - não parava de acelerar. – segura-te bem.
Olhávamos para todo o lado com medo que tivessem entrado num carro e nos seguissem até casa.

- Tens a certeza que eram os que te agrediram?

- Não... Mas se não eram porque nos queriam perseguir?

- Não sei. Vá, esquece isso agora, relaxa. - disse ao ver-me tremer. - Detesto ver-te assim.

Entramos dentro de casa.

- Enquanto estiveres comigo ninguém vai voltar a tocar-te.

- O que podias fazer se eles todos se virassem a ti? Sozinho não consegues fazer nada Matias. E eu nunca deixaria que te magoasses por minha causa. Não posso sequer imaginar o que te podia acontecer se tentasses enfrenta-los...

- Agora dorme. Amanhã pensamos em algo para o caso deles voltarem a aparecer.

Deitei-me como ele aconselhou. No entanto não conseguia adormecer pois a minha mente não relaxava. Imaginava-os a tentar entrar dentro de casa enquanto dormia-mos. Imaginava-os a fazer o mesmo que fizeram a mim ao Matias e cada vez que fechava os olhos sentia-me como se eles estivessem ainda a correr atrás de mim.

Momentos depois os meus pensamentos centraram-se no Matias. Voltei a pensar na forma diferente que o passara a ver depois de saber o que ele sentia por mim. Gostava de o conseguir amar da mesma forma. Sinceramente não percebia como não conseguia ama-lo. Ele era um rapaz perfeito e o sonho de qualquer mulher.

Talvez não me sentisse segura para me apaixonar novamente depois da paixão trágica e obsessiva que tivera com Mickael.

Na manhã seguinte acordei com um pesadelo mais perturbador do que o que acontecera naquela noite: Matias tinha sido assaltado e agredido e dois dos agressores era Mickael e eu, que no final nos beijamos. Não queria acreditar que a minha mente era capaz de imaginar algo tão horrível! Se soubesse teria ficado toda a noite acordada.

Olhei para as horas no meu telemóvel: 6h10. Matias dormia como um bebé. Não iria atrever-me a dormir um pouco mais pelo medo de voltar a ter outro pesadelo. Então decidi acarinhar Matias com uma surpresa pela manhã: um grande pequeno-almoço com torradas, feitas com pão fresco acabado de sair do forno e com compota de kiwi, panquecas, amoras, morangos e um café bem forte. Sabia que aquilo era mesmo “a cena dele”. Como me faltavam alguns ingredientes, saí silenciosamente de casa e caminhei até ao supermercado. Era ali bem perto, por isso sería rápido.

Ao vir embora nem queria acreditar. Mesmo à porta de casa estavam os mesmos homens da noite passada. Escondi-me atrás de um carro estacionado a observa-los. O meu coração tremia. Agora tinha a certeza que eram eles os agressores e que pretendiam mais algo comigo.

Não conseguia perceber todo aquele trabalho a procurar-me e a perseguir-me para me fazerem mal. O que queriam afinal? O que ganhavam com isso? Tudo estava perfeito até eles voltarem a aparecer. Porquê que não me deixavam viver sem medo?

Observavam todas as casas daquele espaço o que queria dizer que não sabiam qual a nossa casa em concreto. Mesmo assim teria que sair dali. Tinha que desaparecer. Não podia deixar que Matias saísse prejudicado por minha causa.
De dia conseguia perceber melhor o aspeto deles. Tentei desenhar o rosto de alguns deles na parte de trás da fatura das compras mas os nervos impediam-me de conseguir fazer alguma coisa. Revistei se trazia o telemóvel comigo para tentar fotografar mas deixara-o dentro de casa. Tentei fixar. Todos tinham corpos grandes e fortes. Ao todo eram seis. Três deles eram barbudos e morenos, outros dois tinham a pele pálida e um deles usava um casaco comprido, preto, de grandes palas que lhe tapavam a maior parte da cara. A outra parte era tapada pelos óculos escuros que usava o que impedia saber qualquer informação física acerca dele.

De repente vi-os a tentar subir o muro da casa do Matias. As imagens do pesadelo cercaram-me a mente. Não podia permitir que aquilo acontecesse. Reagi por reflexo e comecei a correr e a gritar. Se as pessoas ouvissem chamariam a polícia. Mal me viram tentaram apanhar-me e calar-me.

- É a mim que querem não é? Então venham! – berrei.

Fugi tentando leva-los para longe da casa e despista-los. Por Matias faria tudo. Era o meu bem mais precioso. A única pessoa que tinha todos os dias comigo.
Corria o mais que podia mas não tinha mais nenhum plano. Tentei esconder-me por entre as arvores quando um deles foi mais rápido do que eu e apanhou-me. A situação agravara-se. Vi os outros homens tirar facas pontiagudas dos bolsos e acelerar os paços em direção a mim.

Vi Matias atrás deles com uma garrafa de vidro na mão. Percebendo o que estava prestes a acontecer atirou-a contra o homem que me agarrava.

- CORRE! – berrou.

Um outro homem agarrou-o e fez-lhe um golpe no braço. Enquanto corria ouvi o grito de Matias e olhei para trás incrédula mas Matias logo gritou "Não pares!". Obedeci-lhe cobardemente. Corri e corri. Sem parar fui sempre em frente e escondi-me atrás de um castanheiro. Estava silêncio absoluto. O que teria acontecido a Matias? Sentia-me a pior pessoa do mundo. Como pude ser tão egoísta? Esperei alguns minutos e comecei a caminhar em direção ao local onde ficaram. Não conseguia ficar ali sem fazer nada. Não via ninguém. O desaparecimento de Matias cortava-me a respiração.

O sentimento de culpa dominou-me e desatei a chorar.

- Hey, hey, calma, estou aqui!                                     

Dei um salto de susto. Era Matias. Estava de perfeita saúde e pronto para ser esfaqueado novamente. Abracei-o.

- O que aconteceu? Como te livraste deles? Nunca mais voltes a fazer isto! – berrava com ele violentamente.

- Nunca mais voltes tu a fazer isto! O que tinhas na cabeça? Não conseguias safar-te com eles todos a correr atrás de ti. Sabe-se lá o que te podia ter acontecido se eu não fizesse nada. Para a próxima não queires resolver as coisas sozinha e avisa-me da melhor forma que conseguires. – Beijou-me na testa – Ah e os gritos foram boa ideia.

Sorri. Era tão bom tê-lo a salvo que deixei as emoções tomarem conta de mim.
Os nossos olhares cruzaram-se. Senti os seus longos braços encostarem-se na minha cintura e, encostando o seu nariz no meu, beijamo-nos sufocadamente. Os dois rodopiamos levemente como duas folhas levadas pelo vento. Os seus olhos cintilavam como dois diamantes. Quem me dera que o tempo tivesse parado naquele instante e tivéssemos ficado assim para todo o sempre. Mas o beijo acabou e rimo-nos os dois da ironia dos acontecimentos. Sentia-me realmente feliz, como todas aquelas luzes a alumiar todas as ruas. Era inacreditável o facto de todo aquele maravilhoso momento ter acontecido de forma tão parecida como no romance que lera no dia em que o conhecera.

- Só me apetecia aproveitar este momento mas não consigo deixar de me preocupar. – falei - Temos que curar o teu corte, tens que me explicar o que aconteceu, para onde eles foram e temos que sair daqui rapidamente.

- Tem calma. A esta hora já está toda a gente acordada. Eles não vão arriscar-se a voltar, pelo menos não por enquanto. Temos é que agradecer à senhora daquela casa – apontou para uma casa pequena, cor de laranja – porque graças a ela e a ti eu não morri hoje. Ela ouviu os teus gritos, reparou no que acontecia e chamou a polícia. Quando eu atirei a garrafa para tu poderes fugir vi-a a sair à porta e quando tu te escondeste ela gritou que a polícia iria chegar e eles fugiram. Disseram-me que isto não ficava assim e que iriam acabar o que começaram. Vamos sair hoje daqui. Sugestões de lugar?

- Apartamento da Alice em Coimbra. – disse sem hesitar. Sendo bem longe daqui é muito pouco provável que nos encontrem, certo?

- Sim, ótima sugestão! Partimos esta noite para chegarmos lá de dia. Senão a tua amiga mata-nos. – brincou.

- Vais deixar a tua casa, o sítio onde nasceste, onde viveste toda a tua vida…

- Ei… para já a conversa aí onde ficou. Ouve de uma vez por todas rapariga: O que tenho és só tu! Não tenho família, não tenho amigos. E todas as recordações que tenho aqui fazem-me sentir mal. Para mim é um alívio ter uma oportunidade para ir para um sitio novo e começar uma vida nova.

- Bem, nesse caso fico muito feliz por ti! – beijei-o.
Fizemos as malas e organizamos tudo para a mudança. Falamos com a Alice pelo telefone. Explicamos-lhe tudo o que acontecera e perguntamos se não havia problema ficarmos em casa dela uns dias, até arranjarmos uma casa para nós os dois. Claro que disse que eramos bem-vindos para todo o tempo que precisássemos.

Quando escureceu estávamos prontos para partir. A noite estava tão agradável que nos dava vontade de sentarmos no jardim a observar as estrelas. E assim fizemos. Eu observava as estrelas e, de seguida os olhos de Matias. Não havia diferença alguma: eram ambos reluzentes, ambos preciosos, ambos inspiradores, ambos amorosos…

- Luciana, vou-te contar uma crença minha. Há pessoas que acham uma estupides e depois de te contar podes-te rir de mim o quanto quiseres.

- Conta lá, não me vou rir. Se vem de ti de certeza que não é nenhuma estupidez.

- Desde pequeno acredito que os nossos sentimentos têm poder. Quando somos completamente dominados por um sentimento quer de tristeza, quer de alegria, temos capacidade de fazer coisas que nem nós próprios sabemos como fazemos.

- Que tipo de coisas? – despertou-me a curiosidade.

- Eu acredito que duas pessoas que se amem verdadeiramente sentem-se sempre dominadas pelos sentimentos da mesma forma. Então cada vez que uma dessas pessoas estiver assim, pode exercer poderes que desconhece. Podem fazer coisas como comunicarem-se à distância através de pensamentos, olhando para o mesmo sítio.

- Estás a ver a lua? – perguntou Matias sem tirar os olhos do céu – Ela pode ser vista em qualquer lugar. Por isso peço-te para, se algum dia estivermos distantes um do outro, olhares para a lua e fazeres essa experiência. Se isto for verdade vamos sentir-nos mal ou bem ao mesmo tempo e vamos olhar para a lua ao mesmo tempo e nesse momento vamos perceber-nos um ao outro.

- Não me vou esquecer disso! – prometi.



sábado, 4 de abril de 2015

Capítulo 6 – Quem será?

As lágrimas percorriam-me por toda a face.

Não sabia para onde ir nem o que fazer, mas o que era certo é que nunca mais iria voltar a pôr os pés naquela casa. Começava a escurecer e eu continuava a caminhar sem qualquer rumo, sem qualquer destino. No entanto, sentei-me na beira da estrada e telefono a Alice completamente desesperada.

- Estou?! Luciana és tu? – perguntava Alice preocupada quando me ouvia a soluçar pelo telemóvel.

- Alice, fui expulsa de minha casa. Não tenho por onde ir, não sei o que fazer…

- O quê? Como é que isso foi acontecer?

- Aconteceu tanta coisa… Nem sei como te dizer.

- Olha tem calma. Diz-me onde estás que vou ter contigo. A minha mãe pode-me levar.

- Não te sei dizer onde estou…

- O quê?... Como é que foste parar aí?

- Estou em frente de uma casa abandonada. Posso ficar aqui. Não te preocupes.

- Como é que queres que não me preocupe?

- Vou ficar sem bateria. Eu fico bem, não te preocupes. – desliguei.

Olhei para a estrada e vi o Scarpy ao fundo da rua a correr na minha direção. Mandei-o voltar para casa, seria mais seguro para ele, mas ele pela primeira vez não me obedeceu e continuou a correr na minha direção saltando, de seguida, para o meu colo e lambendo-me de saudades como quem me limpasse as lágrimas.

- Oh Scarpy, só tu é que nunca me abandonas! – disse, ainda chorando.

Avancei o gradeamento da casa abandonada, percorri o quintal destruído e entrei dentro da casa que não tinha quaisquer portas. La dentro tinha tudo o que uma casa normal tem, mas tudo destruído de velho. Pelo menos o sofá estava num estado razoável. Podia ficar a dormir ali naquela noite. No próximo dia logo se veria o que ia fazer.

No dia seguinte acordei esfomeada. O Scarpy roía ossos de animais e eu contava o dinheiro que tinha ganhado na Roulotte. Não dava para quase nada. Teria que aceitar a ajuda da Alice antes que ficasse sem bateria no telemóvel.
Como dentro daquela casa não tinha rede, fui experimentar na rua.
Alice não atendia. Talvez fosse demasiado cedo.

Entretanto, um carro parou mesmo à minha frente. Era Matias. Este saiu disparado do carro, e parou de pé a olhar para mim estupefacto. As minhas feridas maiores ainda sangravam e notavam-se grandes nódoas negras na cara. Disse-lhe que se tivesse tempo, podia-lhe explicar tudo. Com a afirmação dele pedi-lhe para que entrasse comigo para dentro da casa. Lá, contei-lhe tudo o que tinha acontecido, desde a agressão à discussão com os meus pais e este ficou pasmado.

- Tens que ir ao hospital. Não imaginas como estás pálida. Tens de tratar essas feridas, estão a infecionar.

- Eu tinha tratado delas antes da discussão com os meus pais. Não te preocupes, eu estou bem.

- Não, não estás. As feridas estão a piorar.

- Eu estou bem. Só quero falar com a Alice…

- Comeste alguma coisa desde ontem?

- Não…

- Anda, pega nas tuas coisas. Vens para minha casa e eu vou-te tratar dessas feridas e dar-te de comer.
Fiz o que ele mandara. Não tinha outra hipótese senão aceitar a sua ajuda. Enquanto entrava no carro e Matias guardava as minhas coisas dentro dele, ouvi a voz de Alice.

- Luciana! – correu até mim e abraçou-me. – Oh meu deus, olha para ti. Não pareces tu. Tens que me explicar melhor o que aconteceu.

- Como sabias que estava aqui? – fiquei surpreendida.

- Estive a noite toda à tua procura. Tive sorte de te ver agora a sair da casa. – olhou para Matas – e quem é ele?

- É um amigo meu… Ofereceu-se para me levar a casa dele. – ambos se cumprimentaram.

- Ainda bem que há pessoas boas. – sorriu Alice, agradecendo Matias.

- Podes vir connosco e explicamos-te pelo caminho o que lhe aconteceu. – disse Matias.
Dito isto, entramos todos no carro, juntamente com Scarpy que me lambeu o caminho todo, até chegarmos ao destino. Alice preparava-me algo para comer enquanto Matias me desinfetava as nódoas negras e as feridas. Agora que estava a ser bem tratada, era suposto melhorar, mas cada vez ficava mais pálida e cada vez me sentia mais tonta e com menos forças.

- Não percebo… quem é que te quereria agredir daquela maneira? E como é que depois disso, os teus pais ainda têm coragem de te pôr fora de casa? – perguntou Alice.

- Eles nunca quiseram saber de mim para nada, é a única explicação lógica que encontro…

- Viemos tarde de mais, os golpes já estão infecionados. Alguns estão em carne viva, ao que me parece, usaram facas. Agora ela tem é que repousar. – avisa Matias pegando em mim e estendendo-me numa cama.

- Luciana, eu tenho que voltar para a universidade. Tinha dito à minha mãe que te ia levar para casa mas já percebi que estás bem acompanhada. – sorriu - Tu aqui vais ficar bem. Se precisares de algo liga-me. – disse ela cobrindo-me com uma manta.

Despedi-me dela. Vi-a a sair pela porta, ouvi Matias a pedir que descansasse e minutos depois adormeci.

Os dias foram passando e a relação entre mim e o Matias ia melhorando dia após dia. Com ele esquecia todos os problemas. Agora desabafava tudo com ele e ele tudo comigo. Era mais do que um melhor amigo, era uma pessoa realmente especial que jamais teria a oportunidade de conhecer! Ele, tal como eu, também teve momentos difíceis no passado em relação à família. Viu os seus pais morrerem queimados num incêndio quando era ainda criança. A sua única família era uma tia afastada e a sua irmã que se mudou para França. Por vezes desabafava comigo e chorávamos os dois. Limpávamos as lágrimas um do outro e com isso a nossa relação melhorava imenso. No entanto não eram apenas conversas tristes. Muitas vezes riamos os dois com as parvoíces que cada um cometia e esses bocados faziam-nos esquecer tudo.

Ninguém diria que, mesmo sem os meus pais, mesmo longe de Alice, mesmo sem as Artes em que eu me dedicava apaixonadamente, mesmo sem tudo isto conseguia viver feliz como nunca, apenas ao lado de Matias, pois bastava-me ele para me sentir completa.

Tinha desistido, tal como ele, dos estudos e fazia agora os meus próprios quadros e esculturas, e, ao fim-de-semana, ajudava Matias no café à beira-mar. Eramos felizes à nossa maneira, ajudando-nos um ao outro, sem quaisquer preocupações.

Num dia de sol fomos até à praia. Eu já estava completamente recuperada por isso aproveitamos para passear. Matias dizia que tinha algo muito importante para me contar, mas que preferia que fosse num local especial. Então sentamo-nos na areia, com as ondas do mar a mergulhar as nossas pernas e o vento a deslizar pelo nosso corpo. O sol caía em cheio sobre a praia, iluminava o mar até ao limite do horizonte e nós saboreávamos a aragem fresca observando as diferentes formas das nuvens.

- Então o que me querias dizer? – perguntei ansiosa – Estamos no lugar ideal para me contares o que quiseres que seja.
Sorrindo, Matias tomou uma das minhas mãos que tinha sobre a areia húmida e observou-me. O meu vestido esvoaçava ao sabor do vento, assim como o meu cabelo.

- Gosto de te ver – disse depois – Fica-te tão bem esse vestido…

- Já o vesti vezes sem conta. – respondi sorrindo.

- Mas desta vez está diferente, o vento e os raios de sol tornaram-no mais brilhante e reluzente, tal como o teu cabelo.

- Fazes-me sentir tão bem! – disse suspirando – Mas diz lá. Não mudes de conversa. Diz lá o que me querias dizer.

- Bem, há algum tempo que ando a tentar dizer-te isto, mas a verdade é que tenho receio que a nossa relação fique diferente depois de saberes.

- Não sejas parvo. Estarei sempre do teu lado, seja o que for que mude.

- Prometes?

- Prometo.